Palestra proferida na Câmara Municipal de Rosário do Sul - RS

Download da palestra proferida em 28/10 na Câmara Municipal de Rosário do do Sul - RS com o título "Como é possível que crianças, que representam o futuro do Brasil, busquem a satisfação de suas necessidades no lixão público?".

domingo, 18 de setembro de 2011

Formulação do conceito de "agente moral"

No estudo de qualquer disciplina dita científica um dos primeiros passos situa-se na configuração do espaço abrangido por ela. Assim ocorre na Matemática, no Direito e mesmo no estudo sistemático da Filosofia.


pintura do artista C. Castro

Na medida que procedemos dessa forma, adotamos o denominado “método científico”, cuja razão de ser não é outra que articular de forma sistemática o conhecimento e permitir que pessoas com as mais diferentes formações culturais, sociais e religiosas possam debater, empregando uma linguagem comum, determinados aspectos do mundo.

Na uniformização da linguagem, os conceitos desempenham papel fundamental. Por expressarem ideias devidamente delimitadas em seus alcances e sentidos, e, por tornarem possível a expressão do complexo por intermédio de combinações sucessivas, legitimam análises de situações pertinentes ao campo objeto de estudo e permitem julgamentos valorativos, como certo ou errado, verdadeiro ou falso.

Entretanto, é comum encontrar-se debates que adotam caminhos alternativos e sujeitam-se aos choques de opiniões, sendo os julgamentos valorativos derivados, no mais das vezes, de crenças que não encontram paradigma de comparação a partir do qual possam ser declaradas verdadeiras ou falsas, corretas ou errôneas. Faltam, nestes casos, critérios de uniformização dos argumentos derivados de conceitos previamente definidos e estabelecidos. E o mais grave, é estabelecida uma espécie de confrontação entre os debatedores, do tipo “nós e os outros”, em que “nós” representa os debatedores que julgam corretos e verdadeiros seus pontos de vistas, e “outros” são pessoas teimosas ou com visões erradas que não conseguem apreender intelectualmente a correção dos argumentos que “nós”, os “corretos”, defendemos. Mas, em nenhum dos lados, conceitos que situem e norteiem os argumentos são apresentados.

Este tipo de fenômeno é comum quando se tomam fatos do dia a dia como pontos de partidas sem que as pré-condições que tornam tais fatos possíveis sejam devidamente avaliados.

Exemplo extremamente comum situa-se no debate dos aspectos éticos advindos da facilidade de acesso à web via internet. Discute-se os “desafios éticos no uso das ferramentas disponibilizadas pela internet” sem que uma compreensão adequada do que seja cidadania, conceito fundamental para a vida em sociedade, esteja estabelecida.

Ignora-se, assim, que desde a Antiguidade Clássica até nossos dias, a concepção de cidadão é, antes de tudo, uma constituição psicológica do indivíduo influenciada pelas necessidades de seu tempo e de profunda conotação moral.

Tal formulação aparece na noção aristotélica de cidadão, que pressupõe a capacidade de liderar e ser liderado (ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martin Claret, 2006), passa por Hobbes e a necessidade de segurança pessoal (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2008) e alcança Rousseau e a moderna concepção de cidadania enquanto liberdade de viver de acordo com leis gerais estabelecidas pelos próprios sujeitos (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011).

Na contemporaneidade, a web, por dissipar as fronteiras geográficas, mudar a noção de distância física e conectar os habitantes de um mundo globalizado, requer a adequada compreensão das três noções de cidadania historicamente estabelecidas: adaptar-se a pontos de vistas divergentes, proteger e manter segura a identidade pessoal e agir civilizadamente de acordo com direitos e obrigações socialmente estabelecidos. Em tal contexto, a web tem tão somente a possibilidade de potencializar e tornar explícitos comportamentos presentes no ambiente social.

A noção de comportamento moral é tão importante na contemporaneidade que é possível vislumbrar-se a evolução da noção de cidadania para a de “agente moral”. Este é o indivíduo imerso no mundo dominado pela tecnologia da informação e comunicação, racionalmente conhecedor das características do ambiente em que vive, capaz de tomar decisões articuladas e fundamentadas e emitir correspondentes comportamentos aptos a influírem, de modo ético, na configuração de seu ambiente social (FLORIDI, Luciano. The Philosophy of Information. Oxford: Oxford University, 2011).

Parece razoável afirmar-se que, no Brasil, existe boa vontade em agir-se de forma ética. Mas falta a capacidade de análise crítica dos próprios comportamentos a partir de uma estrutura conceitual sólida sobre o modo como a filosofia moral está presente no cotidiano de nossas vidas.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Imobilismo, educação e agentes morais

É relativamente comum, na esfera pública, o comportamento de pessoas das mais diversas origens sociais de efetuarem determinada ação seguida da justificativa “pratico tal ato para cumprir minha obrigação”. Temos, então, a ideia de que, “cumprida a obrigação”, cessa toda e qualquer responsabilidade que poderia decorrer de sua não observância.

O que tal fenômeno denota é a predominância da chamada “cidadania social”, em que o exercício da cidadania está quase que única e exclusivamente relacionado com a noção de direitos e umas poucas obrigações.

Na “cidadania social”, as pessoas se vêem, fundamentalmente, como as destinatárias dos mais diversos tipos de direitos em contexto de natureza individual (direitos das pessoas individualmente consideradas, embora direitos coletivos ou indeterminados possam ser previstos, como o faz o Código de Defesa do Consumidor, mas sempre sob uma esfera de passividade, pois instituições especificas são arroladas para suas defesas). Inexiste a ideia de que o pleno exercício da cidadania envolve o engajamento do sujeito na construção permanente do espaço público e que a vida não pode ser concebida como constituida de atos desconectados mas, pelo contrário, é um processo em contínuo desenvolvimento e que cada ação é parte do objetivo maior de construção de uma existência digna e socialmente  produtiva.

A consequência da hegemonia da “cidadania social” sobre as esferas política e cívica é a predominância do imobilismo público, alimentado pelo assistencialismo e clientelismo, como percebido na sociedade brasileira. Individualmente, escolhas e preferências decorrem de impulsos, raramente articuladas e sistematizadas visando um objetivo maior. Em termos singelos, “não se vive a vida”, mas passa-se pela vida ao sabor dos acontecimentos”.

Ocorre que a contemporaneidade exige novos padrões de convivência social. Atitudes ativas e forjadas na disciplina, geração de “projetos de vida” com objetivos claros em termos profissionais e responsabilidade individual indissoluvelmente conectada à social são apenas alguns dos conceitos exigidos. Felizmente, alguns percebem tais necessidades para construção da cidadania sob ótica cívica, como extraído de declarações dos responsáveis pelas melhores escolas brasileiras no ENEM 2010. Argumentar anacronismo dos métodos de ensinos ou criticar os valores elevados das mensalidades de algumas dessas escolas revelam apenas pobreza no debate. Pelo contrário, a concepção de “agentes morais”, como defendido na Europa e EUA (relações sujeito-sujeito na constituição do espaço público em detrimento de relações sujeito-Estado), requer exatamente o tipo de formação oferecido por essas escolas e que deveriam representar o padrão educacional da escola pública brasileira. Por que, não colocado no debate até o momento, a escola pública, com honrosas exceções, não ofecere educação com qualidade, é custeada com impostos de toda a população brasileira, que não tem como escolher não pagá-los, e, pela qualidade da educação oferecida, ofende moralmente àqueles com um mínimo de espírito crítico.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Elementos da Cidadania: Igualdade natural e igualdade social

A publicação dos dados do ENEM 2010 trouxe ao debate, via mídia, diversos aspectos da realidade social brasileira. Um deles foca o método de trabalho e visão de mundo presentes no primeiro colocado no exame, o Colégio de São Bento do Rio de Janeiro, que já obtivera a primeira colocação em edições anteriores do mesmo exame. Somente alunos do sexo masculino, particular e até a opinião, por parte de uma professora da USP, de que os métodos adotados pelo colégio “remetem ao século XIX”, foram alguns dos aspectos do São Bento destacados.

Outro elemento da realidade educacional brasileira bastante explorado é a relação custo versus posicionamento no exame. Entre as escolas no topo das colocações, mensalidades na faixa de R$ 2 mil, cerca de 4 vezes o salário mínimo nacional, não são estranhas.

O debate é extremamente produtivo não apenas na análise da diversidade de opiniões que desperta, mas também no realce de dois elementos da concepção de cidadania hegemônica no Brasil, tomando por referência o trabalho de Angus Stewart (Two Conceptions of Citizenship in The British Journal of Sociology. Londres, v. 46, n. 1, p. 63-78, mar 1995), já citada anteriormente neste blog (post imediatamente abaixo).

Na concepção centrada na relação sujeito-Estado, derivada da Revolução Francesa, a cidadania corresponde a status formal e abstrato em que direitos e obrigações são atribuídos aos membros da nação. Por não se fundamentar em relações sujeito-sujeito, este modo de cidadania é de natureza individualista e privatista, com a identidade comum aos membros da sociedade fundada no uso de uma mesma língua e cultura, por exemplo, e delimitada territorialmente. Sua característica principal repousa na atribuição de direitos ao cidadão frente ao Estado (saúde, habitação, educação, etc), cabendo a este tão somente exigi-los. Encontra expressão nas proposições “igualdade social” e “cidadania social”.

Entretanto, a cidadania se fundamenta em atuações em três esferas distintas: política, civil e social.

O debate sobre os resultados do ENEM se situam no âmbito da esfera civil, fracamente presente nas análises sobre a realidade brasileira, mas de extrema importância no entendimento da concepção de cidadania sob a qual vivemos.

A dimensão cívica da cidadania se funda na capacidade do sujeito atuar sobre e modificar os ambientes social e econômico em que vive. O locus por excelência para ação é o mercado econômico, no qual o cidadão prescinde da proteção estatal articulada em direitos, mas requer tão somente regras normativas que delimitem o permitido e o proibido. A expressão “igualdade natural” simboliza este ambiente (todos são iguais pelo nascimento … mas se diferenciam ao longo da vida por seus próprios méritos). A maioria das escolas que obtiveram as melhores colocações no ENEM se situam nesta esfera.

Muitos argumentos podem ser levantados contra a dimensão cívica da cidadania ou mesmo contra a noção de mercado. Entretanto, é essa a dimensão considerada globalmente nos rankings que classificam as Universidades mais expressivas do mundo, como, por exemplo, The Times Higher Education University Rankings, um dos mais prestigiados. De modo consciente ou não, é também nesta dimensão que se situam as frequentes greves de professores por melhores salários, embora confundidos com direitos sociais.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Por que a cidadania importa nas instâncias política, civil e social

Entre 8 e 9 de setembro do corrente ano o jornal carioca O Globo publicou três notícias que merecem destaque: “Teatro gastou R$ 2 milhões em obras”, “Corrupção nos Transportes já custou R$ 682 milhões” e “Dilma dá ultimato a governadores: ou é nova CPMF, ou não é nada – Sem opções para custear Saúde, presidente quer maior defesa de criação de tributo”.


A primeira reportagem se refere ao incêndio no teatro Villa-Lobos no Rio de Janeiro, provavelmente em função de uma pane elétrica, que literalmente torrou R$ 2 milhões de reais gastos na reforma. Mais lamentável, este é o segundo incêndio no mesmo teatro e o valor citado foi gasto após o primeiro incêndio.

A segunda notícia aponta para irregularidades, como superfaturamento e pagamento de serviços não realizados, somente no Ministério dos Transportes, que causaram prejuízos de R$ 682 milhões aos cofres públicos.

A terceira notícia realça a pressão que o Palácio do Planalto exerce sobre os governadores para ressuscitar a CPMF com o novo título de CSS (Contribuição Social da Saúde), imposto que, quando de sua existência, foi empregado até para aumentar a poupança para pagamentos dos juros da dívida pública, mas nunca para seu real fundamento: melhorar a saúde pública.

Ora, o Estado, por definição, é incapaz de produzir renda e subtrai os valores financeiros que possui da sociedade, principalmente pela cobrança de impostos, pagos por todos os cidadãos indistintamente.

O que se pretende aqui destacar é a incompetência administrativa e irresponsabilidade social, além da violência cometida contra o princípio da cidadania, quando os fatos noticiados são cometidos.

O incêndio do Villa-Lobos remete à falta de planejamento, previsibilidade e prevenção no manejo do bem público. O acidente noticiado foi o segundo, provavelmente pelas mesmas causas, qual seja, problemas elétricos. Apenas para se ter uma ideia de como o descuido no trato da coisa pública no Brasil é alarmante, a reconstrução do World Trade Center em Nova Iorque, após os ataques de 11 de setembro, inclui pesquisas no desenvolvimento de um novo tipo de cimento, três vezes mais resistente que o anterior, com o objetivo de evitar que eventual novo ataque permita a derrubada do prédio. É difícil acreditar na ocorrência de novo ataque, mas tal fato não é impossível. Por isso os cuidados. Já problemas elétricos, infinitamente mais fáceis de previsão e controle, foram simplesmente dados como improváveis de se repetirem pelos órgãos de controles cariocas. Ou então, não se tem o mínimo respeito pelo cidadão contribuinte e seu trabalho que origina os impostos obrigatoriamente inclusos nos bens e serviços consumidos.

A corrupção desenfreada que assola o País aponta para destruição do princípio da cidadania. Esta não pode significar apenas uma frase inserida na Constituição: A República Federativa do Brasil tem como fundamento a cidadania (art. 1º, II). Mas, se o cidadão não concebe a si mesmo como importante no contexto social, apto e capaz de influir na construção do País onde vive, então tal princípio é letra morta, a exemplo do que ocorre em ditaduras atuais como Líbia e Síria. E é exatamente esse o sentimento que parece imperar na maioria da classe política brasileira contemporânea: o cidadão é, tão somente, o sujeito capaz de financiar, de modo coercitivo, o elevado padrão de vida que dispõem os políticos e os grupos a eles associados. Apenas como exemplo e amplamente noticiado, o aluguel do apartamento do ex-ministro Palocci era de R$ 15 mil, o condomíno de R$ 4.600 e o IPTU de R$ 2.300. Enquanto isso, metade dos brasileiros (CEM MILHÕES DE PESSOAS) vivem com até um salário mínimo (isso mesmo, ATÉ um salário mínimo e NÃO um salário mínimo) e TODOS pagam os impostos que financiam o Estado brasileiro. Em tal contexto, a corrupção ultrapassa os limites do comportamento eticamente condenável para ser tornar instrumento de violência social.

As tentativas de retorno da CPMF apontam na direção de visões que reduzem o fenômeno da vida a bem de mercado. De atributo indissociável da concepção de cidadania, pois somente o cidadão em adequadas condições de funcionamento de suas funções vitais consegue participar e influir na organização social, a saúde é transmutada em bem a ser garantido financeiramente e de forma explícita por cada sujeito . Ao ser exigida contribuição específica, é desprezado o fato de que, dentre os impostos legalmente pagos, está inclusa a parcela referente à manutenção da saúde pública (art. 34, VII; art. 35, III; art. 167, IV da atual constituição). Além do mais, o art. 194 da Constituição de 1988 textualmente estabelece: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (sem grifo no original). Ora, impor a criação de novo imposto, via governadores, é distorcer a vontade popular representada no voto, já que o programa de governo da atual presidente inclui o “aumento dos recursos públicos” para o setor e não o aumento de recursos privados, disfarçados de públicos, sob a rubrica de novo imposto. Parece faltar, neste caso, posicionamento moralmente responsável com a sociedade pois, se os recursos são escassos, que se combata efetivamente a incompetência administrativa e a corrupção na esfera pública, descritas nas notícias acima citadas, transferindo os recursos resultantes para a área da saúde.

Finalizando, não cabe apenas apontar falhas em comportamentos públicos. É preciso que cada cidadão assuma sua parcela de responsabilidade política, cívica e social, pois, se os fatos chegaram ao ponto em que se encontram, é por que, tradicionalmente e por motivos diversos, renunciamos aos pleno exercício de nossa cidadania.

Não basta votar e esperar resultados: o voto é apenas um elemento do sistema democrático. É preciso mostrar aos eleitos o que se espera deles e demonstrar que a natureza de seus cargos não equivale a empregos bem remunerados. Se não têm condições de desempenhar o papel a que se propuseram, que renunciem. A velha e surrada frase “donos do poder” já não encontra lugar em sociedades democráticas, pois pressupõe súditos e não cidadãos ativos.

Também não é factível esperar que qualquer governo, por melhor estruturado e moralmente correto que seja, resolva todos os problemas econômicos e sociais das sociedades complexas contemporâneas, entre elas o Brasil. Requer-se que o cidadão participe ativamente da construção social e no funcionamento das instituições, reinventando a si mesmo, transformando as deficiências e planejando os caminhos a serem seguidos. Tal fenômeno exige a expansão do conceito de cidadania em agente moral, no qual o sujeito racionalmente conhece, age e muda o perfil da sociedade de modo a aumentar o nível do bem-estar geral.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Web, Cidadania e comportamento ético

Sob ponto de vista eticamente ideal, direitos autorais devem ser respeitados, plágio não   praticado, informações privadas dos cidadãos não furtadas, a liberdade de expressão defendida, a censura inexistir, e daí afora.

Entretanto, essa não é, em absoluto, a realidade concreta percebida no dia a dia. Apesar do aparato legal e repressivo com vistas a coibir tais fenômenos, eles se manisfestam em quantidade crescente na medida em que um número maior de pessoas tem acesso aos meios disponíveis para a sua prática, dentre eles a posse de um computador conectado à internet.

As proposições sobre as causas de tais comportamentos são complexas, variando desde a discussão epistemológica sobre determinados conceitos, como, por exemplo, a propriedade privada do conhecimento, ou direitos autorais (VAIDHYANATHAN, Siva. Copyrights and copywrongs: the rise of intellectual property and how it threatens creativity. New York: New York University Press, 2001), até posicionamentos que centram na personalidade individual desviante a razão de tais práticas.

Os argumentos propostos neste blog seguirão em direção alternativa aos acima expostos e partirão dos seguintes pressupostos:

1) concepções morais sobre comportamentos corretos, aqui entendidos como socialmente aceitos e incentivados, e incorretos, ou socialmente reprováveis, são criações humanas dependentes de contextos determinados;

2) por serem criações sociais e que, portanto, independem dos fenômenos puramente naturais, as noções de certo e errado, correto e incorreto, determinam, em larga escala, os comportamentos individuais. Assim, comportamentos julgados ilegais, quanto praticados por elevado número de participantes de uma dada sociedade, devem ter suas causas primeiras buscadas no modelo de organização social em que tais sujeitos se inserem. Em certo sentido, este pressuposto remete à concepção Weberiana de organização social (WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 1994, ed 3ª, v 1);

3) dentre as concepções modernas presentes na organização social, a mais importante parece ser a noção de cidadania, seja ela aceita de forma crítica ou presente de modo não percebido na configuração psicológica dos atores sociais.

E por que a configuração de determinado modelo de cidadania é determinante de comportamentos éticos em ambientes públicos de participação em massa, como a web? Pelo fato de que, como se demonstrará a seguir, os sujeitos se comportam como atores sociais guiados por configurações psicológicas correlatas de ambientes sociais historicamente determinados (ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994).

No contexto brasileiro, que será o “locus” por excelência dos argumentos aqui desenvolvidos, a concepção de cidadania parece seguir uma linha evolutiva uniforme deste a época imperial até o presente (MENDES, O.J.R. Concepção de cidadania. São Paulo: Dissertação de Mestrado FDUSP, 2010), fato que permite considerações importantes sobre o padrão de comportamento do brasileiro típico.

Angus Stewart (Two Conceptions of Citizenship in The British Journal of Sociology. Londres, v. 46, n. 1, p. 63-78, mar 1995) defende duas concepções principais de cidadania frente às várias noções associadas ao termo, muitas delas conflitantes. A primeira dessas concepções, a noção formal e legal de cidadania, é a que, por fatores históricos e sociais, serve como protótipo teórico para análise da concepção predominante no Brasil.

Historicamente, a noção formal e legal de cidadania encontra sua origem na Revolução Francesa de 1788 e opõe a noção de cidadão ao de estrangeiro, estabelece a igualdade civil derivada de direitos em relação a e obrigações para com o Estado, além da hegemonia do conceito de soberania nacional, e é, intrinsecamente, uma concepção individualista, forjada na relação sujeito-estado e não na relação sujeito-sujeito que resulte na noção de Estado.

Formal e abstrata, a noção de cidadania é subordinada a noção central de Estado, definido pelo território sobre o qual este exibe jurisdição legal baseado na força, e pelo conjunto de indivíduos sobre os quais vincula suas determinações. Esses conceitos se tornam claros, na história brasileira, quando analisamos, no período Imperial, um dos fundamentos que permitiu a estabilidade política e administrativa enunciados por Paulino José de Souza, Visconde do Uruguai: a responsabilidade central do estado em educar a população sobre o significado de termos como cidadania e bem comum, orientando os sujeitos sobre seus reais interesses e tutelando-os sobre as escolhas adequadas para o bem estar geral (CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 82-89, 1991).

Deste modo, sob uma perspectiva centrada no Estado, a cidadania é concebida como a atribuição legal de um status definido para cada membro da comunidade sob jurisdição legal desse Estado e que compreende um rol de direitos e obrigações. O ponto fraco dessa concepção é que ela não concebe o sujeito como passível de emancipação e autonomia. Pelo contrário, em contrapartida a determinadas obrigações, como, por exemplo, o exercício de uma atividade econômica, o voto e a prestação de serviço militar, o Estado assume extenso elenco de obrigações, vistos como direitos sob a ótica do cidadão, e que passam pela disponibilidade de oportunidades de educação, saúde e bem-estar social (Art. 6º da Constituição de 1988). A noção tradicional de cidadania sob ótica de tripla e indissociável atuação (política, civil e social) transmuta-se em direitos sociais, com o cidadão a reclamar, do Estado, o atendimento de suas necessidades vitais. A consequência é a constituição de sujeitos a-políticos e a-morais (STEWART, op cit), já que essas duas instâncias de atuação social são delegadas aos políticos profissionais e aos programas de governo democraticamente eleitos. Ora, em ambientes em que sujeitos não se constituem como atores aptos a valorar, influenciar e modificar o ambiente social em que vivem, mas se concebem como destinatários privilegiados de bens gerados indistintamente pela sociedade, esperar comportamentos éticos em ambientes coletivos em que recursos estão livremente disponíveis, como o ambiente web, é, antes de tudo, confiar em noções altamente abstratas e subjetivas, como bondade individual (FLORIDI, Luciano. Information Technologies and the Tragedy of the Good Will).

Esse é um problema que, em formato amplo e geral, foi detectado na Reforma Gerencial do Estado Brasileiro de 1995 mas que, posteriormente, foi mitigado no governo Lula. Um de seus objetivos era o de transformar o cidadão de ator social passivo em ator social ativo, capaz de identificar as deficiências econômicas, sociais e políticas em seu ambiente social e reunir esforços no sentido de saná-las. Infelizmente, esse projeto político foi praticamente abandonado em detrimentos de políticas de cunho assistencialista, cuja mérito não cabe aqui analisar mas que, em linhas gerais, apenas se realinham aos ideais do Período Saquarema propostos pelo Visconde de Uruguai. São discursos onde se destaca a preponderância da necessidade de condução externa (heteronomia) das ações de cidadãos incapazes de forjarem a própria autonomia na ação social. O conhecimento da verdade configura-se como privilégio dos governantes, cabendo a estes, sob a orientação centralizada no Estado, o processo de educar e conduzir adequadamente os demais membros da nação. Assim, direitos autorais desrespeitados, plágios em ambientes considerados sérios e competentes ou desrespeito à liberdade de expressão , embora legalmente impedidos, se apresentam como práticas corriqueiras e banais na sociedade brasileira em função da frouxa formação moral e cívica de seus membros e decorrentes de uma concepção anacrônica de cidadania. De acordo com o caso, bens que englobam direitos legalmente definidos são vistos como recursos de livre disposição ao cidadão e que reside em sua discricionariedade a oportunidade de apropriação particular sem a necessidade de contrapartidas específicas, como é o caso dos direitos autorais. Em outras circunstâncias, como a da liberdade de expressão, o cidadão parece não valorá-la como elemento indispensável para o exercício da autonomia de ação social.

Obviamente, não se está aqui a defender que uma concepção de cidadania fundada no posicionamento crítico e na autonomia de ação resolva, por si só, problemas éticos e de ilegalidade de comportamentos. Mas representa um dos pilares, ou condição necessária, para constituição de cidadãos morais e socialmente responsáveis.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Agente Moral como expansão do significado de Cidadão

A revista Veja (17 agosto de 2011, página 8) noticiou que o governo britânico está incentivando atividades físicas para crianças com até cinco anos de idade como política pública de combate ao sedentarismo futuro dessas crianças quando na idade adulta.

Este é um importante exemplo de como muitos de nossos hábitos cotidianos derivam de práticas aprendidas na mais tenra idade e se reproduzem pela vida afora. Em termos psicológicos, o conjunto de práticas adquiridas na infância integram o modelo comportamental que norteará o futuro adulto em ações no ambiente social.

Tal fenômeno permite, também, a percepção de quão importante é a presença da educação básica centrada em princípios éticos derivados da cidadania e voltada para o desenvolvimento da autonomia. Alguns autores, como Carl Ratner (Cultural Psychology. Londres: Lawrence Erlbaum Associates, 2006), focam estudos no entendimento da relação psicologia e cultura e propõem uma redefinição conceitual e metodológica da Psicologia como caminho para reformas sociais. Na visão de Ratner, esse é a via para solução dos fenômenos que indicam sérias doenças sociais, dentre as quais podem ser consideradas a exclusão do bem estar de grande número de cidadãos, consumismo desenfreado, falta de sentido da existência, etc.

No Brasil, onde a desinformação e miséria educacional desempenham função social significativa na perpetuação de estruturas arcaicas de dominação social (ver posts abaixo), hábitos longamente arraigados e derivados da tutela estatal (cidadania regulada, ou cidadania do permitido e desejado … sob o ponto de vista do Estado), do patrimonialismo, da corrupção política e do assistencialismo enquanto simulacro de democracia podem ser melhor entendidos sob a esfera da constituição psicológica de determinado tipo de indivíduo que atenda tal objetivo (o tipo médio brasileiro: pobre, sem educação, socialmente marginalizado e, por tais razões, passível de "adoção" pelo Estado e candidado a uma bolsa de ajuda qualquer, sem que as causas de seu abandono social e econômico sejam alteradas).

Obviamente, não se justifica aqui que uma educação deficiente justifique o argumento de, por não ter sido educado sob determinado prisma, o sujeito esteja isento de desenvolver posicionamentos críticos. Embora com maior grau de dificuldade, por, muitas vezes, significar rompimentos com padrões de condutas fortemente arraigados, tal é possível e desejável por intermédio da experiência e de estudos na idade adulta. Mesmo por que, supondo aquele argumento válido, indiretamente se está mitigando a capacidade que permite a cada pessoa procurar e moldar a vida que considera digna para si e simbolizada na autodeterminação existencial (tutela, qualquer que seja seu modo, implica necessariamente ausência da capacidade de escolha).

Mas o que significa, para o sujeito, “moldar a vida que considera digna para si”?

Esta é uma daquelas perguntas que possuem significados diferentes para cada pessoa. Um dos conceitos basilares que norteiam as respostas possíveis se encontra na definição do que seja cidadania. Mas esta definição também se metamorfoseia de acordo com o tempo e lugar em que é formulada. Contemporaneamente, tem sido fortemente associada com a noção de “direitos” (contra quem? A quem cabe a obrigação de satisfazê-los? Em que condições? Em que medida? Em detrimento de quem?), mitigando seu sentido mais amplo (para uma ideia abrangente, consultar
http://www.usp.br/agen/?p=46280 ).

A concepção de “agente moral”, sem a banalização do uso indiscrimando que caracteriza o conceito de cidadania, permite o estabelecimento de pontos de partidas para uma valoração adequada de qualquer resposta possível.

De forma resumida, "agente moral" alarga a noção de cidadania e caracteriza o sujeito:

a) que apresenta razões (ou argumentos adequados e logicamente conectadas) para suas ações (o que, em princípio, supõe um nível mínimo de espírito crítico – ver o post abaixo “Agentes morais e infosfera”);

b) que aceita explicitamente a responsabilidade de viver em uma comunidade (discursos sobre direitos, sem as correspondentes responsabilidade sociais, são palavras vazias);

c) que se engaja no fortalecimento naquilo que se denomina “sociedade civil”, oposição ao todo poderoso Estado tutelador de vontades e modos de vidas.

Talvez o contra exemplo de um “agente imoral” resuma, claramente, a ideia até agora exposta. Esse exemplo encontra-se em Macunaína: o herói (herói?) sem nenhum caráter (sem o questionamento no original), de Mário de Andrade.

Escrito em 1928, Macunaíma representa uma crítica social ao seu tempo que, infelizmente e ao contrário do que, provavelmente, desejava seu autor, se tornou o exemplo inconsciente de parcelas consideráveis da sociedade brasileira - a coisificação do outro, com o egoísmo e interesse próprio (e por que não a corrupção?) como método da ação (não soa estranho, por exemplo, que, mal começa uma administração, já se discuta quem é o candidato potencial ao próximo governo federal, como destacam alguns órgãos da mídia, e não se ouçam protestos indignados contra tais comportamentos?!! Qual o objetivo de uma eleição: escolher o administrador que melhor atenda aos interesses e expectativas dos cidadãos ou desprezar esses cidadãos e satisfazer desejos narcisistas de exercício do poder pelo poder?).

Finalizando, a noção de “agente moral” não sofre as limitações espaciais, temporais e políticas presentes em muitas significações da palavra cidadania.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Constituição de agentes morais

No modelo conceitual sobre a constituição cognitiva do sujeito contemporâneo elaborada por Floridi (ver “post” seguinte) e expressa na noção de agente moral, o primeiro estágio centra-se na apropriação de informações que permitirão ao sujeito pensar sobre o mundo e nele interagir. Neste ponto, torna-se de fundamental importância algumas considerações sobre o que se entende por “apropriação de informações”.



A primeira questão que se coloca, de natureza estrutural, diz respeito ao ideal de sociedade e correspondente cidadão. Na proposição desse ideal, visões românticas devem ser deixadas de lado e argumentos intelectualmente responsáveis formulados. Por exemplo, é comum atribuir-se grande parte dos males sociais contemporâneos ao “modo capitalista de produção”, mas tais críticos, quando as oportunidades surgem, na maioria das vezes, não renegam as benesses da vida material proporcionado por tal sistema (para uma discussão teórica do assunto, ver COHEN, G.A. If You´re an Egalitarian, How Come You´re so Rich? Cambridge, Masschusetts: Harvard University, 2000).


Outro argumento que requer melhor formulação é a relação educador versus remuneração. Se é inquestionável a necessidade de salários adequados à classe dos professores, também é inquestionável a necessidade de melhor formação técnica de parcelas consideráveis desses profissionais (ver “DIAS, Rosanne Evangelista e LOPES, Alice Casimiro. Competências na formação de professores no Brasil: o que (não) há de novo para uma discussão sobre o tema).

A segunda questão se situa sobre o tipo de formação a ser priorizada e se refere ao ideal de cidadão a ser constituído: uma educação hegemonicamente técnica, voltada para a reprodução de modelos, ou que alie a capacidade técnica com a imaginativa, sem descuidar da ética social? Queremos cidadãos cônscios de seus papéis sociais ou “mais e melhores consumidores”? (expressão atribuída à presidente argentina em visita recente ao Brasil).

A terceira questão se situa especificamente na configuração do agente moral: desejamos a formação de cidadãos com autonomia no traçado de seus destinos (e aqui se configura a figura do agente moral) ou sujeitos tutelados pelo poder e vontade estatal ? (para uma discussão sobre o tema, ver “VALE, Teresa Cristina de Souza Cardoso. Cidadania regulada: uma exploração crítica do conceito”).

Importante salientar a diferença entre o que se expressa por “imaginação criativa” e “autonomia”. O Brasil, por exemplo, é rico em imaginação criativa em função da produção científica relevante, mas pobre em autonomia na medida em que essa produção teórica não se traduz em riqueza para a sociedade como um todo.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Agentes morais e infosfera


Provavelmente , qualquer pessoa sabe, ao menos intuitivamente, o significado do termo biosfera. Significa a reunião de todas as partes da Terra passível de abrigar vida.

Imagine, por analogia, o termo infosfera. Significa todas as formas de comunicações entre seres vivo ou, em sentido mais restrito, entre seres humanos.

Pois infosfera representa conceito fundamental no pensamento de Luciano Floridi, filósofo italiano da Universidade de Oxford (Inglaterra) voltado para estudos fundacionais na Filosofia e Ética da Informação.

Floridi elaborou um modelo conceitual sobre a constituição cognitiva do sujeito contemporâneo (Information Technologies and the Tragedy of the Good Will, disponível em www.philosophyofinformation.net). Nele, configuram-se três dimensões que interagem para determinar as maneiras como nossas vidas se desenvolvem e transcorrem.

Partindo da percepção empírica que nossa época funda-se essencialmente na troca constante de informações entre agentes (informação escrita, informação visual, informação auditiva, informação virtual, etc), Floridi concebe o sujeito moderno como agente moral que, de posse de informações complexas, guia sua vida por decisões que procuram, em cada dado momento, evitar alternativas consideradas moralmente inválidas ou potencialmente prejudiciais.

As três dimensões constitutivas do sujeito situam-se na apropriação de informações (quaisquer que sejam), na geração de informações (a partir das apropriadas) e na disseminação dessas informações de modo apto a moldarem ou transformarem o ambiente social em que ocorrem. A infosfera é a dimensão da vida em que as trocas de informações acontecem.

Tal concepção tem profundas implicações sobre determinadas maneiras de caracterização do que seja o cidadão. Ao conceber a pessoa como “agente moral”, assume implicitamente a capacidade deste (autonomia) em determinar o que é bom e o que é o mal em suas decisões cotidianas. Também perde significado a tutela assistencialista presente em muitas políticas públicas que, de forma deliberada ou não, julgam o cidadão como incapaz de autodeterminar suas opções de vida. Em contrapartida, realça-se a obrigação do Estado disponibilizar oportunidades de educação de qualidade, de modo a garantir a não-ocorrência das disparidades no bem-estar social.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Colonialismo, cidadania e conformismo

São característas das sociedades certas restrições conjunturais e limitações de ações.

No Brasil independente do primeiro quartel do século XIX as restrições se deviam ao passado colonial que impuseram uma forma específica de vida social e material.




As limitações se situavam no campo das mentalidades, estabelecedoras de padrões de pensamentos difíceis de serem rompidos, como a manutenção do regime escravagista enquanto outras nações já o haviam abolido.

Coube a Paulino José Soares de Souza, Visconde do Uruguai, identificar no mandonismo das instituições e na apatia da população as razões para o Estado assumir o papel de educador cívico da população e substituto em sua vontade política. Esse foi um dos componentes do Período Saquarema, ao lado da centralização administrativa, que encerrou o conturbado período pós-independência e estabeleceu uma espécie de pacto social no Brasil.

Ao identificar a apatia como característica comum da população e afiançar o papel do Estado como tutor dos verdadeiros interesses dos cidadãos, Uruguai forjou uma concepção de cidadania que, em termos de autonomia, é negativa. Ela não confia na intencionalidade individual, na capacidade do sujeito pensar e exercer suas capacidades transformadores sobre o ambiente social em vive, ao contrário de outras concepções até então predominantes.

Até que seja educado a identificar o bem comum e aprenda o significado da cidadania, a tutela estatal, onipotente, decidirá e imporá ao cidadão o que lhe convém ou não. Mas, negar autonomia na vida social, é negar oportunidade para que os termos produzir, perceber, participar e compreender ganhem sentido por intermédio da experiência e componham aquilo que, fenomenologicamente, é o “mundo da vida”. Assim, “vida experimentada” é substituída por “vida tutelada”; identidade e diferença tornam-se amorfas e autonomia metamorfoseia-se em tutela.

Supondo a correção da tese de Uruguai, a pergunta que se apresenta, então, é o porquê do cidadão brasileiro comum do século XIX não distinguir a coisa pública da coisa privada e a razão pela qual não diferenciava seus interesses legítimos daqueles que supunha serem seus e que conduziam à subordinação aos interesses alheios. O passado colonialista nacional parece fornecer as respostas adequadas. Durante mais de quatrocentos anos de jugo sob Portugal a razão da existência imposta foi a de produzir riquezas para a Metrópole sem qualquer tipo de questionamento. Quaisquer dúvidas a respeito da autoridade portuguesa ou propostas de caminhos de vida diferentes daqueles julgados como adequados à dominação sempre foram duramente reprimidos e sufocados. As primeiras décadas pós-independência bem refletiram esse estado de coisas, com guerras internas que objetivavam a desconstituição do poder central hegemônico agora representado pela capital Rio de Janeiro. Muitas vezes, de maneira simplificada, o motivo de tais revoltas podem ser localizadas nas condições de miséria em que encontravam seus participantes. Ora, a principal razão psicológica que conduz a mudança na situação de vida das pessoas apresenta-se nas condições particulares em que estão mergulhadas e precisam enfrentar na luta pela sobrevivência. Ao calar o grito por mudanças nas condições de vida pela matança dos revoltosos, o governo central eliminou no nascedouro as possibilidades de aprendizado, pela experiência, do significado das expressões "coisa pública" e "interesses pessoais legítimos".

Autonomia é conceito que não significa tão somente liberdade de ação, mas respeito à iniciativa do outro e clara delimitação da área de atuação de cada um em condições de igualdade social. Delimitação de área de atuação, condição de igualdade e liberdade social são, antes de tudo, práticas que os sujeitos experimentam, compreendem e atribuem significado durante seus percursos de vida. Apenas no plano abstrato não adquirem a força e a eficácia derivados do enfrentamento das situações diárias postas pela vida e que, pela autorreflexão, apontam para a necessidade da racionalidade no agir humano. É no pensar sobre as atitudes, as escolhas e ações empreendidas e nos resultados e objetivos alcançados que se modela a mais adequada forma de ação e se estabelece o padrão de hábitos que comporão as rotinas que resultarão em melhores condições de vida. Com a incorporação dessa racionalidade no padrão de vida, pelo desenvolvimento do hábito da iniciativa e pela apresentação de novas necessidades, as rotinas compõem os elementos dos processos evolutivos que fornecem condições para o desenvolvimento sustentável das famílias, dos grupos, das comunidades e, em visão abrangente, da própria sociedade.

Quando se tutela algum comportamento ou situação na vida de uma pessoa, as possibilidades de escolha de ação são retiradas da esfera do tutelado e transferidas para a responsabilidade do tutor.O modelo cognitivo é imposto externamente na tentativa de estabilizar e tornar previsíveis os comportamentos do tutelado, restando a este a experiência da conformação. É negada a incorporação da racionalidade na formação psicológica que resulta da compreensão dos méritos e perdas das diferentes escolhas de vida que se apresentam no decurso da experiência.

Alguma semelhança com o nosso atual conformismo geral frente à corrupção, ineficiência e autoritarismo dos atores políticos brasileiros?

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Educação e sorte social

Encontra-se em andamento o programa “Ciência sem fronteiras”, com meta de capacitar em educação de alta qualidade 75.000 acadêmicos no prazo de quatro anos (http://www.mct.gov.br/upd_blob/0217/217221.pdf). As áreas prioritárias para o programa são as de natureza técnica, entre elas engenharia, computação e sistemas de informação.

Não restam dúvidas sobre a importância do programa na medida em que seu objetivo centra-se no incremento do desenvolvimento econômico baseado na tecnologia, na inovação e na competitividade. Mas algumas críticas mais abrangentes sobre a política educacional brasileira podem e merecem ser tecidas.

Antes, porém, é necessário a explicitação da expressão "qualidade da educação". De acordo com a Unesco (The Quality Imperativehttp://www.unesco.org/education/gmr_download/en_summary.pdf), dois princípios definem o que seja qualidade em educação.

Um deles se refere ao desenvolvimento das capacidades cognitivas como dado objetivo (mensurável) em todos os níveis do sistema educacional. Capacidade cognitiva envolve a representação adequada do que seja o mundo expressa nas identificação e interrelação de seus fenômenos.

O outro princípio enfatiza o papel da educação na promoção de valores e atitudes na realização da cidadania, do potencial criativo e do equilíbrio emocional.

Para que a qualidade em educação seja concreta, alguns pre-requisitos se apresentam, com o primeito deles centrado na educação e cuidados na infância. A ausência de cuidados aumenta as possibilidades de exclusão social e econômica das crianças que não tiveram oportunidades de frequentar programas adequados.

Aqui se insere a crítica antes mencionada: “Ciência sem fronteiras” foca a educação, primariamente, como compromisso econômico em detrimento do social. Aumento de oportunidades econômicas não é sinônimo de melhoria nos padrões de bem-estar sociais das comunidades (o seguinte endereço contém exemplos ilustrativos: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0892/noticias/veja-como-as-cidades-brasileiras-investem-os-royalties-do-petroleo-m0128066).

A maneira adequada encontra-se em abordagens que privilegiem o equilíbrio econômico-social das metas educacionais. Conjuntamente com a realização do programa, deveriam ser feitos expressivos investimentos na implementação de creches de qualidade e nos ensinos fundamental e básico.

Considerado direito básico pela Constituição de 1988 (art. 7°, XXV; art. 208, IV), o total de matriculados em creches no Brasil atinge menos de 17% das crianças na faixa etária 0 - 3 anos de idade (estudo abrangente encontra-se no endereço http://www.todospelaeducacao.org.br/comunicacao-e-midia/noticias/12891/brasil-deve-triplicar-numero-de-matriculas-em-creches-para-atingir-meta-do-pne).

Sem preocupações com os estágios fundamentais de formação dos futuros participantes, programas como o “Ciência sem fronteiras” parecem depender, basicamente:

1) da sorte social, no caso do participante pertencer aos níveis economicamente menos favorecidos da sociedade, pois a ocorrência das condições adequadas para seu desenvolvimento intelectual é contingente; ou

2) de o participante provir das camadas economicamente aptas a propiciarem educação adequada aos seus membros.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Hábitos & Rotinas

Algumas pessoas criam hábitos profissionais de tal forma arraigados que se sentem angustiadas quando tais rotinas são quebradas e elas ficam, momentaneamente, ociosas. Raramente, essas pessoas julgam tais momentos como oportunidades valiosas para a formação educacional continuada, ausentes de pressões e, muitas vezes, dependentes apenas do esforço pessoal.




Alguns exemplos se encontram a seguir, disponíveis de modo gratuíto (e legal) na web:

1) Freemind: software para modelagem e planejamento gráfico de, praticamente, qualquer tarefa que alguém se proponha a realizar. A partir de um núcleo, o software permite a criação de ramificações indicativas dos passos sequenciais ou hierárquicos a serem seguidos.
Disponível em versão em português.

2) Virtualização: permite a criação de diversos computadores virtuais independentes em um mesmo computador físico. Serve aos mais diferentes propósitos:
a - aprendizagem: alguém usuário do windows pode criar um computador virtual para aprender linux, por exemplo;
b - segurança: pode-se configurar um computador para uso restrito, como acesso à conta bancário e informações privilegiadas, e outro para uso geral, como e-mails e visitas a sites, evitando os perigos de roubo de senhas via web (sites visitados pela primeira vez (e talvez não seguros) ou mensagens falsas por e-mail);
c - ferramenta de trabalho: máquinas virtuais são transportáveis de um computador para outro e se adaptam facilmente a diferentes configurações de hardware.
Disponível em versão em português.
Endereço: www.virtualbox.org.

3) Acesso remoto: O logemin é um software que permite, de modo seguro por intermédio de senhas, o acesso entre computadores remotos. Para tanto, requer sua instalação no computador remoto e, de qualquer local, via web, pode ser controlado. Possui versões gratuita e paga, com a gratuita plenamente funcional.
Disponível em versão em português.
Endereço: www.logmein.com

4) Desenvolvimento de páginas web: Netobjects fusion essentials é um software para planejamento e desenvolvimento rápido de páginas web, o que não significa ausência de “look” profissional. Não requer conhecimento prévio de nenhum tipo de linguagem, como html, por exemplo, e permite especificações de características avançadas, como “headers” para mecanismos de buscas.
Disponível em inglês.

Uma outra maneira especialmente rica para o desenvolvimento intelectual de qualquer pessoa, mesmo que em eventuais horários vagos, é a leitura. Temas como moral, ética, história social brasileira e crítica literária, apesar de pouco valorizados entre nós, podem ser interessantes e mudar os rumos de vida do leitor.

terça-feira, 26 de julho de 2011

A função social da baixa educação

Desde o momento do nascimento começamos a sofrer transformações induzidas pelo mundo externo. Por intermédio dos órgãos sensoriais sentimos quando está frio ou quente e aprendemos a procurar uma situação de equilíbrio. Aprendemos a andar e a falar, e desenvolvemos gradativamente, em maior ou menor grau, a capacidade de raciocínio abstrato como modo de representação do mundo.


Fato que merece destaque nesse processo de formação de uma consciência individual é que os estímulos que desencadeiam os aprendizados originam-se na necessidade de suprir uma falta de habilidade específica e na busca de equilíbrio.  Aprendemos a andar porque ainda não possuímos tal capacidade, o mesmo ocorrendo com o falar. No frio, procuramos proteção de um agasalho porque nosso corpo não consegue produzir o calor adequado para nos manter suficientemente aquecidos.

O aprendizado é de fundamental importância no processo porque representa, em face da solução, uma adaptação e transformação da capacidade intelectiva. Uma vez que o sujeito aprenda a falar, não retornará mais ao estado pré-fala.

Talvez pareçam óbvias demais essa afirmações, mas existem situações análogas em que não são, em absoluto, percebidas. Antes, porém, torna-se necessário um outro esclarecimento: sobre a natureza do equilíbrio antes mencionado. Equilíbrio em relação ao quê? Equilíbrio em relação às habilidades de outros sujeitos com quem a pessoa convive. No momento que esta atinge patamar semelhante de desenvolvimento, a tendência é a manutenção do equilíbrio e a necessidade de aumento da habilidade perde importância.

Agora a razão porque a transformação decorrente do aprendizado não é tão óbvia quanto parece.

Em um país com a expressão das desigualdades sociais como o Brasil, a lógica do aprendizado em busca do equilíbrio deveria apontar para a contínua transformação intelectiva dos que se encontram em estágios menos desenvolvidos no caminho dos estágios mais desenvolvidos de bem estar social. Mas o cotidiano mostra que tal não acontece. Porquê? Por que o atraso, a ignorância e o subdesenvolvimento exercem diversas funções sociais, fenômeno que não muda muito no transcorrer do tempo. 

Em 08/10/2003, com base em publicação do Banco Mundial, o jornal Folha de São Paulo (“ NE prefere trabalhador sem estudo”) denunciava que Estados e empresas do nordeste preferiam e estimulavam a contratação de empregados menos educados como constituição de uma força de trabalho “menos dócil, menos móvel e com menos aspirações”. Em outro artigo, “Os negócios da elite e o medo da educação”, e com autoria atribuída ao Banco Mundial (publicado na mesma data pelo mesmo jornal), consta que a “elite modernizante” no Nordeste preferia contratar pessoas com apenas o ensino primário. Os governantes nordestinos, diz o estudo, “apoiam a estratégia das empresas” ofertando subsídios para treinamento e estimulando a retórica de que seus Estados têm mão de obra competitiva em relação a outras economias emergentes. “Antigos fatores que levam à iniquidade social são impressionantemente adaptáveis” aos governos “democráticos”. “A educação primária oferece o básico para que esses trabalhadores, com um pouco de treinamento, se tornem competitivos em relação a regiões nas quais os salários para as mesmas funções são significativamente mais altos”.

Qual a saída para essa manipulação social? Talvez a mais premente seja a luta contra a cidadania tutelada, expressão que, em si mesma, representa um paradoxo. Se cidadania é, em primeiro lugar, assumir autonomia de pensamento e ação, a partir do momento em que é tutelada deixa de ser cidadania e passa a ser dominação, com a transmutação do cidadão em súdito.

Em alguns casos, a melhor forma de enfrentamento é pela participação ativa via ação individual focada na mudança social. Começar a mudança por si mesmo, forjando uma personalidade que entenda e valorize a vida em sociedade (o exemplo próprio é a melhor das forma de expressão de opinião). As oportunidades, em sociedades apoiadas na tecnologia da informação como está se transformando o Brasil, existem e estão disponíveis para todos.

domingo, 24 de julho de 2011

Moral & Ética

Praticamente qualquer pessoa tem uma noção matemática dos números e suas aplicações elementares, como somar os valores de produtos comprados e pagar o montante devido. Mas se essa mesma pessoa for perguntada sobre a definição do que seja número, dificilmente responderá, a menos que tenha uma formação razoavelmente sólida em matemática, já que deverá conhecer a teoria dos conjuntos e lógica. Isso sem mencionar o fato de que somente no final do século XIX, com Gottlob Frege (Os Fundamentos da Aritmética, tradução para o português de Luís Henrique dos Santos), se chegou a uma definição formal de número.




O domínio do que seja a moral e a ética encontra analogia com o do conhecimento sobre números. Nos valemos cotidianamente de conceitos derivados da filosofia moral e de princípios éticos, mas não sabemos defini-los com clareza e precisão. Argumentar que o termo ética deriva do grego e que foi inicialmente abordado de forma sistemática por Aristóteles, enquanto moral tem sua raiz no latim “mores” e significa costume, não esclarece muita coisa.

Existem diversas concepções de filosofias morais, como o utilitarismo e o intuicionismo, e práticas éticas estão intimamente associadas com cada uma dessa filosofias na medida em que elas lhes fornecem as justificativas apropriadas. Embora a filosofia moral tenha por objeto primeiro a busca da distinção entre o que seja o certo e o errado, tal somente é possível no contexto de um ideal de homem e de sociedade. Como existem ideais diferentes, também existem concepções morais diversas.

As grandes concepções morais do presente foram germinadas a partir do movimento Iluminista Europeu, com o deslocamento da responsabilidade das justificativas dos atos humanos de Deus para o homem. O germe para tais concepções localiza-se, indubitavelmente, mais longinquamente no tempo, em Thomas Hobbes e seu Leviatã (1651), que rompeu definitivamente com as concepções aristotélicas de natureza humana. Entre elas estão o utilitarismo (Jeremy Bentham e John Stuart Mills), a Deontologia (Kant), a Teoria do Comando Divino, o Individualismo possessivo, fundamento da racionalidade econômica e a Justiça como equidade (John Rawls – A Theory of Justice (1971)).

Qualquer concepção moral, de acordo com Ashley Mackenzie, se divide em três ramos: ética aplicada, ética normativa e ética analítica.

A ética aplicada questiona o sujeito em cada situação sobre o que é certo ou errado fazer.

A ética normativa considera três razões das escolhas: a ação, a pessoa que a executa e as consequências advindas. Se o foco é na ação (deontologia), algumas são valoradas como essencialmente positivas e outras como negativas, independente de quem as pratica, como, por exemplo, práticas cruéis (eminentemente negativas). Se o foco é na pessoa, entramos na seara das virtudes pessoais, como a solidariedade social. Se o foco é nas consequências, então apenas os resultados das ações são valoradas. O exemplo clássico encontra-se no pensamento do sociólogo alemão Max Weber, que, em termos políticos, definiu os termos ética da responsabilidade e ética da convicção. A ética da responsabilidade é eminentemente consequencialista, enquanto a ética da convicção abarca as virtudes. Outro exemplo de ética normativa encontra-se nos códigos de condutas das profissões.

A ética analítica debate os conteúdos e justificativas dos discursos morais.

A filosofia moral não pode ser confundidos com os costumes transmitidos pela tradição, embora estes possam ser classificados como sentimentos morais. Costumes são práticas sociais estabelecidas pela repetição constante de comportamentos, muitos de forma acrítica. A filosofia moral exige posicionamento crítico, justificativa de proposições e ordenamento lógico sistemático de suas partes.

Um excelente livro que aborda a moralidade pública no Brasil é o de autoria de Edson de Oliveira Nunes - A gramática política do Brasil. A edição original publicada pela Zahar (1997) está esgotada, mas uma nova edição foi lançada em 2010 pela Garamond.

Nunes identifica quatro padrões que norteiam o relacionamento entre sociedade civil e esfera pública: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos. Embora o período analisado compreenda os anos 1930-60, parece que as práticas institucionais em nada se alteraram.