No estudo de qualquer disciplina dita científica um dos primeiros passos situa-se na configuração do espaço abrangido por ela. Assim ocorre na Matemática, no Direito e mesmo no estudo sistemático da Filosofia.
pintura do artista C. Castro
Na medida que procedemos dessa forma, adotamos o denominado “método científico”, cuja razão de ser não é outra que articular de forma sistemática o conhecimento e permitir que pessoas com as mais diferentes formações culturais, sociais e religiosas possam debater, empregando uma linguagem comum, determinados aspectos do mundo.
Na uniformização da linguagem, os conceitos desempenham papel fundamental. Por expressarem ideias devidamente delimitadas em seus alcances e sentidos, e, por tornarem possível a expressão do complexo por intermédio de combinações sucessivas, legitimam análises de situações pertinentes ao campo objeto de estudo e permitem julgamentos valorativos, como certo ou errado, verdadeiro ou falso.
Entretanto, é comum encontrar-se debates que adotam caminhos alternativos e sujeitam-se aos choques de opiniões, sendo os julgamentos valorativos derivados, no mais das vezes, de crenças que não encontram paradigma de comparação a partir do qual possam ser declaradas verdadeiras ou falsas, corretas ou errôneas. Faltam, nestes casos, critérios de uniformização dos argumentos derivados de conceitos previamente definidos e estabelecidos. E o mais grave, é estabelecida uma espécie de confrontação entre os debatedores, do tipo “nós e os outros”, em que “nós” representa os debatedores que julgam corretos e verdadeiros seus pontos de vistas, e “outros” são pessoas teimosas ou com visões erradas que não conseguem apreender intelectualmente a correção dos argumentos que “nós”, os “corretos”, defendemos. Mas, em nenhum dos lados, conceitos que situem e norteiem os argumentos são apresentados.
Este tipo de fenômeno é comum quando se tomam fatos do dia a dia como pontos de partidas sem que as pré-condições que tornam tais fatos possíveis sejam devidamente avaliados.
Exemplo extremamente comum situa-se no debate dos aspectos éticos advindos da facilidade de acesso à web via internet. Discute-se os “desafios éticos no uso das ferramentas disponibilizadas pela internet” sem que uma compreensão adequada do que seja cidadania, conceito fundamental para a vida em sociedade, esteja estabelecida.
Ignora-se, assim, que desde a Antiguidade Clássica até nossos dias, a concepção de cidadão é, antes de tudo, uma constituição psicológica do indivíduo influenciada pelas necessidades de seu tempo e de profunda conotação moral.
Tal formulação aparece na noção aristotélica de cidadão, que pressupõe a capacidade de liderar e ser liderado (ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martin Claret, 2006), passa por Hobbes e a necessidade de segurança pessoal (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2008) e alcança Rousseau e a moderna concepção de cidadania enquanto liberdade de viver de acordo com leis gerais estabelecidas pelos próprios sujeitos (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011).
Na contemporaneidade, a web, por dissipar as fronteiras geográficas, mudar a noção de distância física e conectar os habitantes de um mundo globalizado, requer a adequada compreensão das três noções de cidadania historicamente estabelecidas: adaptar-se a pontos de vistas divergentes, proteger e manter segura a identidade pessoal e agir civilizadamente de acordo com direitos e obrigações socialmente estabelecidos. Em tal contexto, a web tem tão somente a possibilidade de potencializar e tornar explícitos comportamentos presentes no ambiente social.
A noção de comportamento moral é tão importante na contemporaneidade que é possível vislumbrar-se a evolução da noção de cidadania para a de “agente moral”. Este é o indivíduo imerso no mundo dominado pela tecnologia da informação e comunicação, racionalmente conhecedor das características do ambiente em que vive, capaz de tomar decisões articuladas e fundamentadas e emitir correspondentes comportamentos aptos a influírem, de modo ético, na configuração de seu ambiente social (FLORIDI, Luciano. The Philosophy of Information. Oxford: Oxford University, 2011).
Parece razoável afirmar-se que, no Brasil, existe boa vontade em agir-se de forma ética. Mas falta a capacidade de análise crítica dos próprios comportamentos a partir de uma estrutura conceitual sólida sobre o modo como a filosofia moral está presente no cotidiano de nossas vidas.